terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Ausência num sonho (em memória ao meu irmão)

- Não! – Grito no silêncio da noite assombrada por um pesadelo e na penumbra do meu quarto.
As lembranças do teu rosto marcado por uma queda mortal palpitam-me apressadamente no coração. O teu corpo jaz num chão gélido de morte num hospital. Padece pálido, hirto e sombriamente acinzentado.
Ergo o meu corpo suado e afasto os lençóis tomado pelo susto. Um tremor percorre-me e enche-me o rosto de lágrimas. À minha frente sobre a cómoda tenho um quadrado estático fixo em mim. Sinto-me incrédulo perante o realismo daquele sonho trágico que tive.
Os anos corroeram a tua face bonita de criança estampada em papel fotográfico. A tua moldura empoeirou a minha memória.
Quarenta e dois anos restam do tempo em que te perdi e a tua ausência pernoita nos escombros da minha mente, assumindo a forma do pesadelo. Uma vida de memórias perdidas.
O horror de uma imagem familiar retrata o teu rosto triste num corpo débil. Amparo-te e protejo-te. As tuas perninhas frágeis quase se inclinam sobre mim porque a tua doença congénita te fragiliza os ossos.
- Como? Como podes ser tu instigador de temor em mim de noite e de dia, meu anjo protetor? Apenas um ano de vida nos separava! Tão criança eras quanto eu! Porquê? – Questiono-me, limpando os restos de mágoa que me tolhem os olhos.
Aguardo imóvel uma resposta vinda da cara amarelecida e gasta frente a mim. Esgoto-me na tristeza deste momento e na ausência silenciosa das tuas palavras e repouso a cabeça pesada no travesseiro, buscando paz e tranquilidade.
Os últimos instantes calmos da tua morte fazem-me lembrar pouco a pouco os resquícios do meu sonho medonho. Recordo a perplexidade das imagens premindo as pálpebras assustadas e trémulas.
Inexplicavelmente, como numa reportagem televisiva, confundi no meu sonho as cenas mais nefastas do mundo, como se não houvesse tempo de permeio entre elas. Enredei os retalhos dos horrores feitos e sofridos pelo Homem, tal qual “ takes ” batidos por um realizador de um filme absurdo. Sonhei como um Picasso, pincelando na tela do meu sonho cruel os raids assassinos dos nazis, a monstruosidade em cogumelo de Hiroxima, o radicalismo suicida de alguns muçulmanos em guerra permanente, os massacres de ditadores do Leste Europeu, a chacina dos monstros de asas do onze de setembro nas Twin Towers, o atentado do mesmo dia em março em Espanha e a loucura extremista de um norueguês em Utoya. O verde pacífico daquela ilha crivada de corpos boiando nas suas margens, gelou-me completamente os sentimentos e, o meu cérebro dormente conduziu-me ao teu mundo efémero e à tua vida breve de nove anos.
- Porquê? – Coloco num grito surdo perguntas que ficaram por responder, abrindo os olhos irados de fogo e de revolta. – Não te ouviram a cair da cama? Deixaram-te padecer sem auxílio naquele chão frio sem apoio? Não te ergueram do teu catre de morte? Trataram-te como um desgraçado sem te dar uma mão?
Solta-se de mim ainda uma lágrima ressequida pelas quatro dezenas de anos e reflito ainda tentando sossegar no peito a minha amargura injustiçada.
Milhões sofrem a ausência de um ente querido como eu. Milhões calam o tumulto de lágrimas de uma perda repentina, arrancada a outros milhões de gente nos seus últimos instantes de vida. Depois apenas lhes resta do outro a ausência ténue e dura de minutos, horas ou anos. A ausência que resulta num luto delével ou profundo. A ausência do outro que se embrenha na névoa do nada. Ficam as marcas esquivas da sua companhia ou do seu aconchego em nós que atormentam os nossos pensamentos ou sonhos como juízes declarando a sentença das nossas culpas.
Ergo-me finalmente da cama e caminho pesaroso em direção à cómoda. Agarro a moldura antiga e encaro nela o teu rosto pequeno e os teus olhos despertos que iluminam a minha alma. A emoção regressa aos meus olhos turvos.
Reparo na minha mão que pousa leve no teu ombro. Revejo a sepultura ladeada de cedros gigantes num cemitério distante de mim. Na fotografia redonda que se embutiu num livro de mármore com palavras de memória, resta para sempre a minha mão pousada sobre o teu ombro.
Emociono-me desde esses dias tortuosos por ti e por tudo o que é trágico. Qualquer eco de abandono, de tortura e de morte causada por suicidas no mundo me marcam profundamente. O que mais me entristece são os gritos conformados da minha mãe que ecoam ainda na minha mente.
Olho com ternura o teu rosto inesquecível. Memorizo-lhe os contornos como que eternizando em mim a lembrança da tua memória, sem sentir a tua ausência no meu coração.
Coloco um beijo sentido no vidro opaco pelos dedos do tempo e aproximo a moldura lentamente do meu peito.
- Meu querido irmão! Meu pequenino! Eu não tive a culpa! – A minha garganta engole a saliva abundante de comoção. – Não me deixaram ver-te na hora da partida para a tua última morada! De quem foi a culpa da tua ausência tão prematura? Minha não foi certamente… porque ainda te amo!?
Naquele tempo do início de liberdade, a minha família prendeu-se à dor, ao luto constante. Os outros pequenos de casa não entenderam a perda. Cinco e três anos. Tenros demais para sentirem o nosso pesar próximo. Nós os três fingíamos a estabilidade, a segurança, a alegria, chorando às escondidas. Os petizes haviam-se habituado a ver o mano doente, caído no terraço, e quando partiu, soltaram-se algumas desculpas.
- O mano foi para o céu. Foi para os anjinhos! Está lá como uma estrelinha a olhar por nós! – Dizia o meu pai, rodeado deles. Eu fechava-me no meu quarto, para carpir a minha dor.
Não houve Páscoa, nem Natais felizes durante anos. Eu partilhava a tristeza com os meus progenitores. Fragilizei-me. Entrei na juventude carregando um fardo soturno demais. Fugia dos amigos. Fugia de familiares e vizinhos para não escutar sentimentos falsos.
- Pobrezinho!
- Coitadinha da criança!
- Nem soube aproveitar a vida!
- Deus levou-o tão prematuramente!
- Que será de vós sem ele!
- Um alivio para a mãezinha, que também padeceu tanto com o doentinho!
Revoltei-me contra a maldade verdadeira das pessoas e fechei-me para o mundo. Gritava no monte o meu desespero, o meu ódio contra o Deus que levara o meu mano, a minha companhia. Abandonei a catequese, cortando laços com a igreja. Odiei-me e martirizei-me durante anos, detestando o que via de mim projetado no espelho.
- O que vai ser da minha vida sem ti, mano? – Perguntava-me vezes e vezes. – Os pequenos são uns bonecos malandrecos. Não tenho paciência para eles. Fazem-me tantas partidas. Tu é que eras um menino bom e partiste de mim!
Os anos foram dando lugar ao conformismo. O tempo foi curando as saudades. Tratou as feridas da dor. Nestes tão longos anos recordo-me de ti evasivamente, quando preciso de ti, em datas de família. E nesses dias tu regressas ao meu coração para me acalmar, para me dar coragem. Eu até acho que continuo forte, lutando, por tua causa. A tua fragilidade física engrandeceu mesmo a minha força.
E agora já se sossegou o medo após este sonho mau. Já vomitei todas memórias marcantes de ti para me aquietar. Perdi-te mas acho-te sempre que preciso de ti.
- Preciso agora! Leva-me este desassossego para longe! – Abro os olhos, ainda um pouco estremunhado. O rosto da moldura sorri-me finalmente. Choro emocionado com a tua alegria na minha.
Batem-me à porta. O meu filho espreita.
- Está tudo bem?
- Sim…
Fecha a porta pausadamente. Rio feliz, e levanto-me pegando novamente no quadro.
- Mano! O teu sobrinho é parecidíssimo contigo! Obrigado, meu Deus! – A fé regressou ao meu coração, que estava vazio.
Lá fora o dia começa a esticar os raios de sol matinais e eu estou certo que o meu anjo-irmão me irá proteger, amparando os meus dias mais frágeis e inseguros.

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