domingo, 3 de março de 2019

A carta que não te escrevi - da Antologia Três Quartos de um Amor (Chiado Ed.)


   Redigo esta carta timbrada de lágrimas. As palavras confortam-me a dor da perda. Tão célere, tão para sempre. Pudera eu afastar os anjos que te envolvem no sepulcro celeste. Pudera eu ser um deles, que te embalaria nos meus braços, eternamente.

    Odeio-me por nunca te ter escrito uma carta, e restar somente esta, que não poderás ler. Talvez a escutes, enquanto balbucio os trechos, que componho para ti.

     Esforço-me para te amar. Esforço-me para me recordar que te amei, efusivamente, louca. Os lábios tremem de emoção, de paixão, de desejo ardente, enquanto vivemos juntos este amor. Tão breve. Tão pouco.

     Efémera a tua existência em união comigo. De alguns anos. Um amor que depois se minou pela doença e se transmutou em dedicação, entrega e carinho. Até que o veredito final te sentenciou e te apartou de mim.

     Choro, juro que choro, mas tento acalentar o sofrimento, com a imagem do ardor dos teus beijos, o ímpeto do teu corpo em mim. Amo-te, juro que te amo ainda, quando sinto a cama vazia de ti e procuro o teu calor; quando coloco na mesa o prato da tua ausência; quando mexo na tua roupa macia, que te protegeu o corpo…quando escuto as aves, que me deixaste, presas aos meus cuidados.

     Sinto este amor manchado pela tragédia, pelo infortúnio dos dias que passo só. Gemendo pela nossa casa. Cheirando o teu perfume por todo lado. Mexendo nos objetos que ficaram para me aguçar a memória.

     As almas perduram eternas e a tua está impregnada em mim. Escuto-a palpitar num ventrículo do coração. Ocupou-o para sempre. Abalou do teu corpo e instalou-se no meu, com a garra de um amor sofrido e descarnado.

     Há sinais e gestos que ficaram: o teu sorriso brando a correr para os meus braços, o baque forte dos nossos corpos colados de suor. As nossas gargalhadas escutavam-se na vizinhança invejosa e atenta para escutar as nossas noites. Os nossos risinhos comprometidos fizeram sempre a cobiça dos outros.

     Cada dia passa dolente e eu isolo-me no quarto para não encarar os rostos dos vizinhos. Apiedam-se da tua partida, zombando de mim. Mas não me importa que o façam, porque tomei uma decisão em teu nome. Todos os dias da vida colocarei as gravações dos nossos gritos em alto som; as gargalhadas que registamos. Quero que te escutem, e que nos escutes aí de cima. Os anjos irão dar-te esse poder, esse dom. Tu mereces, nós merecemos, por este amor tão intenso, flagelado pela morte.

    Assim, meu amor, esta carta não escrita em vida, vai-te chegar aos ouvidos, com o batimento das asas das aves que também amavas, e que rasgarão os céus para te encontrar. A melodia das penas afinará o meu amor por ti.

    Recebe estes trechos soprados e compõe a mais bela sinfonia de amor, acompanhada pelo teu coro de anjos, que eu aqui estarei a escutar o bater do teu coração alado dentro de mim, amando-te eternamente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário