Os sinos repicam pelos céus negros
da terra. Aflitos, gritam pelo socorro que parece tardar. Pedrógão foi há
pouco, tão trágico, dilacerante, arrasador, mas ali o acaso não marcou o
infeliz infortúnio da morte, evitando-a com as mãos protetoras dos homens e
asas perspicazes dos aviões.
Os gritos surdos das aves e o rastejar
agonizante dos animais no mato, protegem-se do Hades. Correm aturdidos pelo
medo, quase asfixiando. A floresta, alvejada pelos ventos quentes do fervor das
chamas, recebeu a amarga notícia: Seis de outubro. Incêndio deflagra às 14.14. Pipa.
Vila Cã.
O verão tardio traz a calamidade infernal. Há dedos postos no peito e
olhos lacrimejando do fumo e pela angústia tormentosa e inquieta daqueles
momentos.
- Nosso Senhor nos acuda! Ai,
Jesus, que morremos todos aqui! – Grita uma viúva, numa prece rápida.
Uma criança agarra-lhe as saias sombrias e
choraminga, escondendo o rosto para não ver ao longe o susto maior.
- Vamos embora, avó! Por
favor! Ele vem aí! Vamos embora, por favor! Vamos fugir…
- Deus vela por nós. Vai para
dentro, Maria, vai que vem aí um avião! Vai soltar água pesada! Foge, Maria,
foge! – Tenta a calma, enrolando um lenço à cabeça.
- E tu, avó? Não vens? – Chora
a criança, tossindo e compondo os caracóis louros colados à testa.
- Eu vou guardar as ovelhas no
curral de cima. Mete-te dentro de casa, minha joia! Eu cuido de ti. Não tenhas
medo! – Olha o destino de sopros violentos e sombrios. - O vento vai mudar. Sim,
vai mudar… A sorte está connosco!
A criança protege-se a medo, caminhando
para casa, dá de caras com um cão encolhido e assustado, que aguarda ordens
prementes.
- Vem, Catita, vem comigo!
Esconde-te em casa! Hoje podes entrar na sala! Vem!
- O fogo não fica cá… tenho a
certeza! – Garante a mulher, falando sozinha, confiante, e pega num varapau
para tocar o pequeno rebanho inquieto, que mal se divisa no fumo. – Não vamos
ser levadas daqui, não vamos! Não vou deixar a minha rica casinha, herança do
meu homem! Que Deus o tenha em boa graça! Zé, vela por nós, por amor de Deus!
Por mim, p’los teus filhos que estão
em Abiúl, p’los teus netos, e por
esta netinha que nem conheceste! – Ergue os olhos para o céu que não distingue,
em lágrimas. – Corre, Moça, corre! Macaca, foge daqui! Bolinha, sua sacana! És
tal qual uma cabra! Põe-te a mexer, rapariga! Queres ficar esturricada?
Os animais sobem a inclinação de mato,
apressando caminho. Juntam-se em cima e esperam a dona, que transpira exausta e
aguenta a idade, recolhendo-os para um local seguro.
O vento adamastor torce-se rápido pelas
povoações de Lagoa de Santa Catarina e Ribeira de Fárrio, voando alto e
assustador pela floresta, saltitando como um criminoso de aldeia para aldeia.
Socalcando e destruindo árvores, lugares de vida da gente, locais de fazer
dinheiro, depressa, ofegante. Tem pressa de dizimar vidas, de as reduzir a
cinzas, a nada, sem piedade.
Cai pela noite o fogo temente e assombra a
quietude do sono nas aldeias outrora belas. A noite abrasa em labaredas
gigantes pelos montes e toca bem perto as habitações. Aqui e acolá escutam-se
gritos de medo, horror e pânico. As chamas sobressaltam os resistentes, os
corajosos, que tentam aspergir os seus bens, para os proteger. Guardam os
animais que lhes restam, resguardando-os da morte certa. O cenário é aterrador,
intenso, demoníaco.
- Júlio! Acode-me aqui! Nossa
Senhora de Fátima nos valha! – Grita uma mulher jovem desgrenhada, escorrendo
suor e lágrimas tremidas pelo rosto. Pega num balde de água para atirar aos
murros da casa. – Homem! Olha-me p´los meninos
se morrer aqui queimada! Mete-te no carro com eles e foge!
- Não, Rita, não te deixo,
nunca! Morro de medo, mas não. Não fujo, não largo o que é nosso por nada neste
mundo! Fugir p’ra quê? P’ra ficar no caminho como os de
Pedrógão!?
- Ai, a nossa Maria! Espero
que o fogo não as atinja muito por lá! – Geme aflita. – Que aflição será a da
minha mãe a saber-nos aqui também em apuros!
- Está tudo bem, sossega! O
fogo andou por lá, mas avançou para outras paragens! Não há rede… não dá para
telefonar, mas está tudo bem!
- Espero que tenhas razão. –
Diz, lançando um jorro alto de água sobre um murro.
Dois rapazes surgem no limiar da porta de
olhos avermelhados pelo fumo. No horizonte, ao fundo, o monstro fumegante
enrola as árvores, esganando-as como uma cobra que estrangula a seiva da vida. Queima-lhe
as copas, os braços, o tronco, reduzindo-as num ápice a cinzas. O vento dá-lhe
força e imponência.
- Pai! – Grita um, assustado.
– O fogo não vai chegar cá, pois não? Parece tão perto!?
- Talvez não. Vão para dentro,
filhos, não se pode respirar aqui. - E tapa o nariz com o lenço, que sustém ao
pescoço.
- E a escola não vai arder… -
Afirma o outro rapazinho, triste. – Tivemos que fugir de lá! Não a deixam
arder, pois não, pai?
- Não, filho! Descansa. A
escola foi evacuada por precaução. Vão para casa. Abriguem-se. Já oiço os
bombeiros…eles vêm aqui ajudar-nos!
- Deus seja louvado! – Diz a
mulher, benzendo-se e largando o balde.
Um pouco depois, na sala, o mais pequeno
aconchega-se no sofá aveludado, escutando das janelas o zumbido do fogo
longínquo a derrubar as árvores. Está cansado, pesando-lhe os olhos, que nem vê
como o irmão se tenta concentrar num estudo urgente para a semana seguinte. Desperta
repentinamente e fixa à sua frente um rosto calmo, plácido, prazenteiro.
Lá fora aprimora-se a tragédia da maldade
dos homens, com o requinte pernicioso das unhas ferventes do Diabo.
Ali, o rosto da moldura acalma a criança
e fá-lo quase adormecer. O cabelo estampado levemente ondulado, com bastante
brilhantina, intriga igualmente o irmão, que penteia o seu. Escuta-se o
crepitar das chamas altas na noite.
- No tempo deste senhor não
havia estes fogos! – Pensa alto, largando o livro.
- O que disseste? – Estremunha
o mais jovem, dando um pequeno salto, assustado.
- Não aconteciam incêndios
como este… - Repete.
O pequeno senta-se, fixando a figura. Pela
janela passa uma luz de rajada que o faz gritar.
- São as luzes dos carros dos
bombeiros. Metem medo porque é de noite.
- Senta-te aqui ao pé de mim,
João!
- Pois… - Sorri ligeiramente.
- Diz-me….Quem é este senhor?
- Um grande herói de Pombal,
Simão!
- Herói?
- Não foi bem um herói… Tenho
a certeza que já te falaram dele na escola…
- Não me lembro, mano!
Escutam-se sirenes ao longe. Ecoam na
noite húmida e abrasadora. As luzes piscam e, raiando tufos de fumo e fogo,
apavoram os desafiadores da sorte. Júlio e Rita aguardam as ordens das
autoridades e vão molhando a relva e os muros.
- Devíamos pôr de sobreaviso
os meninos caso seja preciso abalar. – Diz ansiosa ao marido.
- Cuido que não seja
necessário. Até à última não os vamos alarmar desnecessariamente! Estão na
sala, talvez um pouco nervosos, mas estão melhor lá do que aqui!
- Tens razão. Que desgraça
esta! A nossa linda terra toda queimada aos bocados, Júlio!
- Renascerá! Acalma-te! Rega
tudo enquanto temos água.
- Molhar não vai adiantar se o
fogo teimar em se aproximar… - Lamenta Rita, vendo atrás dela um clarão do
fogo, castelos gigantes de fumo, crescendo no horizonte sombriamente asfixiante.
– Os bombeiros estão aqui, mas se o fogo vier nesta direção levará tudo à
frente!
- Não penses nisso. Não
havemos de ter uma desgraça assim tão grande!?
Os rapazes aproximam-se a medo da janela
ampla da varanda. Divisam os novelos de fumo por detrás da inclinação montanhosa
que conheceram sempre verdejante.
À tarde os irmãos avistaram daquela
varanda aviões com caldeiros distribuindo rastos compridos de água pelos céus.
- É uma guerra, mano? – Perguntou
o pequeno Simão.
- É igual a uma guerra. –
Suspirou João, tentando não mostrar o nervosismo. – Mesmo igual. Tem havido
feridos, mortos…e tudo destruído…
Agora no lusco-fusco de sombras avermelhadas
os irmãos abrem os olhos, abraçados e receosos.
- Não vejo o pai nem a mãe! –
Preocupa-se o pequeno, procurando-os no jardim, mas o fumo tapa as luzes.
- Nem eu. Estão ali, mano! -
Diz o outro, largando-o e apontando.
- Este é o dia mais mau da
minha vida! – Afirma o pequeno, soltando um soluço.
- Pior…Também meu.
- Vai, vai, fogo mau! – Grita
ele, enervado. – Desaparece para sempre! Estamos fartos de ti!
- Olha, vamos brincar… - João
afasta o irmão da janela.
- Não quero brincar…está um
monstro lá fora, um monstro que pode engolir os papás, a nossa casa, os nossos
cães, a nós… - Choraminga Simão.
- Isso não vai acontecer. –
Assegura o mais velho.
As
luzes cruzam-se nos céus com a cor forte do fogo. Atrevido e audacioso tenta
descer o monte, lançando pequenos focos aqui e acolá. Ameaça perto as casas, as
hortas, os matos. As vidas. Retalhos dos contos dos últimos meses no país. De
um país enlutado. De um país ensombrado. De um país belo, chagado de cinza,
ruína e destruição. De um país à mercê dos ditames dos criminosos. O calor e a
seca extrema serviram de pretexto ou de atrativo para incendiários pouco
escrupulosos, maquiavélicos, que construíram sabiamente uma trama trágica.
O casal resguarda-se atrás do camião dos
bombeiros. Um grupo de homens fardados enfrenta um Destino ardente, desenlaçando
mangueiras e jorrando água sobre as chamas. Populares, atrás deles, espancam as
mais pequenas, de lenços no nariz e olhos a lacrimejar. Os bombeiros estão
esgotados de semanas indetermináveis de combate, mas os homens da aldeia parecem
sempre frescos para querer corajosamente salvar os seus bens.
- Vai para casa, Rita! Acalma
os meninos!
- Vem tu também comigo, senão
vou buscá-los para aqui! Tenho tanto medo! Olha ali! Já desce! Está perto, meu
Deus! – Alarma-se.
- Ilusão tua! Vou contigo
então. Nada adianta ficar. Há aqui gente que chegue para lhe fazer frente!
Entro para comer qualquer coisa! A noite vai ser longa!
Fixam o pequeno monte. De repente, o que
parece ser a língua do Diabo ardente, passa a ser miraculosamente as unhas
dele. Veem-se focos minúsculos a desvanecer que não tomaram as árvores e que
logo foram extintos. O fumo intoxicante impregnava tudo, mas o vento acalmava.
- Bom sinal! O vento está a
parar… - Anuncia Júlio, retendo-se.
- Deus seja louvado!
Em casa, os rapazes correm a abraçá-los. Felizes.
O pequeno tosse como cheiro a fumo que os pais emanam. O fumo fugaz e arguto penetra
em casa sem ser convidado.
- Está quase apagado.
Sosseguem, filhos! Quando pudermos vamos buscar a mana! Não pensámos que passar
o dia com a avó se esticasse até quase de madrugada. Deve estar tudo bem! – Profetiza
o pai.
- Os bombeiros já se vão embora
para outras paragens! – Espia a mãe da janela. – Estaremos seguros, pois todos
os vizinhos estão de vigia.
- O tio Jorge, mãe? – Interpela
o rapaz mais velho.
- Vi-o passar com os outros
homens. É muito corajoso para enfrentar o fogo!
De repente faz-se silêncio na sala. Os
olhos de Simão poisam no quadro.
- Pai, quem é aquele senhor? –
Pergunta o pequeno, sentando-se na sua perna.
- Quem?
- O senhor do quadro!?
- Aquele senhor foi o Zé da
Serra, um homem muito importante para Pombal. Foi poeta, ator e muito amigo de
toda a gente. Muita gente lhe tinha uma grande consideração. Os vossos bisavós mandaram
fazer um quadro com uma cópia de uma fotografia dele. Nasceu no século XX e era
muito brincalhão nas poesias que escrevia no jornal daquele tempo.
- Era assim que o chamavam? Zé
da Serra? – Inquire o mais velho, olhando para a mãe que continuava ansiosa a
espreitar para fora.
- Bem… Era António Gaspar
Serrano. Este senhor teve uma vida muito ativa. Estava metido em tudo o que era
cultura e coletividades em Pombal.
- O que é coletividade, pai? –
Intriga-se o pequeno.
- É uma associação, um grupo…
por exemplo, o rancho.
- As poesias dele estão escritas
num livro chamado “Gazetilhas do Zé da Serra”. Ainda não o li, mas deve ser engraçado.
– Diz Júlio, pensativo.
- Pois eu li. – Intromete-se a
mãe e corre para a estante empoeirada de flocos de cinza num canto da sala. –
Para falar a verdade a minha avó leu-me estes textos fantásticos em serões mais
calmos do que este. A Maria também gostaria de estar aqui a ouvir… - Dá-lhe uma
repentina ansiedade.
- Deixa acalmar os caminhos,
que vamos buscá-la à avó! Ela está bem, querida! Não penses tanto! – Sossega-a
o marido.
- O livro é muito antigo,
quatro anos após a Grande Guerra. Julgo tê-lo aqui. – Retoma Rita, suspirando e
sentindo o ar queimado entrar pelos buraquinhos dos estores. Já não se
divisavam luzes de alerta lá fora, mas ainda via pequenos clarões monte acima,
entre a cortina entreaberta.
- A sério, mãe? – Pergunta o
mais velho, esquecendo os horrores do exterior.
- Sei onde tenho uma
“gazetilha” mais antiga tirada de um jornal que existia naquele tempo chamado
“O Eco”. “Gazetilha” devia ser um texto pequeno, que ele escrevia em versos. Estava
dentro deste livro. Encontrei!
- Senta-te ao pé de nós e lê,
mãe! – Pede Simão, entusiasmado.
- Se calhar não vais perceber
nada, meu querido. As palavras são muito velhinhas… - E ri-se, sentando-se ao
seu lado. – Esta “gazetilha” é muito engraçada!
- Vá lá, mãe, diz! Diz! –
Anima-se, corando.
- Chama-se “Eco…da Figueira”,
da Foz, claro! Lembram-se de irmos lá à praia?
- Sim, mamã! Quero ouvir! Diz!
- Volta o mais velho.
- Então, escutem todos! –
Começa corajosa, tentando auto-acalmar-se. – “Isto, por cá, não vai mau./ Há
sardinha e carapau…” - E as crianças riram. – “E muito “peixão” sabido. / Mas
estes são só p’rá vista/ E recreio do banhista/ Que, comê-los, é “pribido”./
Comem-se bons pastelinhos, / Todos gostam dos docinhos, / E a “massa” é um caso
sério…/ Na “Bijou” ou no “Nicola”, / Tudo gosa e se consola, / Na “Marniz” ou
na “Império”! / Andam todos sorridentes, / Alegres, negros, contentes / E os
“pi-pis” não têm parança.” – E as crianças riram à gargalhada, percebendo os
pais a associação. – “Eles são menos, elas mais, / E assim, em casos tais, / Há
desnível na balança! / Um p’ra cinco, é o costume. / Pouca “acha” e muito lume,
/ O caso dá que pensar. / P’ra tanto calor, assim, / Digo cá de mim p’ra mim /
Que o que lhes vale é o mar…/ Para evitar tal desgosto / Eu afianço e aposto /
Singelo contra dobrado: / P’ra o ano, se Deus quiser, / Seja homem ou mulher /
Tudo vem acompanhado.” Publicou estes versos em setembro de 1946. Imaginem só
como são antigos!
- Sabes que mais! Este senhor
era uma pessoa com muita cultura e conhecimento! – Comenta o pai, certo do que
afirma.
– A tua avó tinha-lhe uma
grande devoção! Contou-me que este poeta era uma pessoa muito simples. Esta
“gazetilha” foi uma forma engraçada de fazer críticas à sociedade daquela
altura e ao exagero com que as pessoas comiam quando estavam nas pastelarias e
cafés à beira-mar. Era muito corajoso também para enfrentar as dificuldades num
tempo em que não se podia escrever, nem dizer, o que se queria. – Conta Rita,
ciente das barreiras políticas e sociais. - Vocês riram-se da palavra “pi-pis”.
São e já eram pratinhos de moelas muito apreciados…
O telefone interrompe a agradável conversa
em sobressalto. Rita corre a atender, enervada.
- A menina? – E logo, suspira
de alívio, atenuando o suspense nos olhos da sala. – Isto aqui está mais calmo,
mas o mano anda serra acima com os outros homens e eu não estou descansada.
Mais um pouco e vamos ver se a polícia nos deixa passar para aí. Conta-lhe uma
história, mãe! Acabei de ler uma “gazetilha” do Zé da Serra! Até logo!
- Então? – Pergunta o marido,
erguendo-se.
- A Maria já está cansada de
estar sem nós! Vai ver se podemos ir buscá-la!
Ficaram sós os três na instabilidade da
incerteza durante uns minutos. Júlio tardou em chegar para inquietude de todos.
- Fazem já o rescaldo. A
estrada está aberta. Vamos tentar?
- Vamos. – Decide Rita, com as
lágrimas na margem dos olhos, misturadas com o suor de outono a correr tardio
da testa.
Ali, na noite, havia um ventinho sufocante
de fumo e cinza. Meteram-se no carro branco camuflado de cinzento. Na rua um
nevoeiro ainda cobria o caminho. Não havia uma casa queimada por ali, mas o
mato, as árvores haviam sido destruídas e ainda fumegavam bem perto.
- Vamos passar dentro do fogo,
pai? – Pergunta nervoso o pequeno.
- O fogo já está quase
apagado, Simão. – Diz, desviando-se de dois galhos tombados sobre a rua.
A luz elétrica não existe, mas as chamas
ainda insistentes alumiam o caminho. Encontram alguns agentes da polícia que os
mandam avançar. Os rostos estão exaustos de vigiar as noites demoníacas
anteriores.
- Estás bem, mano? – Rita
ensaia a calma, segurando o telemóvel junto à orelha e aguardando depois a
resposta, impaciente. - Desce, vai descansar. Precisas descansar, Jorge! Deixa
os bombeiros fazer o rescaldo. Já ajudaste imenso. Ainda bem que me atendeste!
– Desliga e dá as novidades. – O tio diz que o fogo está quase apagado!
- Falta muito para chegarmos a
casa da avó? – Pergunta Simão, inquieto.
- Não, filho. Mais um quilómetro
e estamos lá. – Responde o pai, desviando o carro de mais um tronco queimado na
estrada.
- Que bom!
A viagem foi curta, mas morosa e a aflição
também. O cenário noturno, num pico da serra, era desolador, mesmo sem se ver.
Havia aqui e ali muitos murmúrios do Inferno. A serra do Zé ainda se consumia,
moendo-se em chamas.
Os olhos choravam com o negrume do fumo.
As crianças tossiam esporadicamente, colocando lenços à frente da boca e do
nariz. Agora não existia o ar puro daquele monte. A paz daquele lugar
reduzira-se às cinzas das tramas humanas.
O carro atravessa a aldeia e aporta frente
a uma quintinha, apitando na madrugada. Num ápice surge uma criança alourada,
choramingando. Atrás dela uma mulher de meia-idade, cruza os dedos sobre o
peito.
- Graças a Deus, chegaram!
Saem do carro, apressadamente. Abraçam-se
saudosos de um tempo curto de separação. Um molho de gente entrega-se à saudade
boa e ao amor fraternal.
A avó choraminga, emocionada, lamuriando-se:
- Só vos imaginava como os de
Pedrógão! Deus me perdoe! Rezei tanto!
- Ó mãe! – Repreende-a Rita,
quase chocada com a semelhança dos seus pensamentos. – És sempre tão
pessimista! Só pensas em desgraças!
- Pois, pois… - Júlio sorri,
apertando a mão à sogra. – Afinal correu tudo bem, minha sogra. Temos que ter
força e coragem para suportar esta tristeza! Com o amanhecer o nosso monte, as
nossas terras não vão ser iguais!
- Maria!? Vamos para casa? –
Pergunta Rita, afagando os cabelos da filha.
- Sim, mãe. Tenho saudades
dela.
- Ficas bem, mãe?
- Sim, fico bem com o meu cão
e as minhas ovelhas! O mato está todo queimado, mas hei de sachar a terra e
cortar os galhos para fazer lenha! Já estão quase em carvão! Queimam depressa
na lareira!
As crianças entram no carro, felizes,
acenando à avó. Depois entram os adultos.
- Deus vos guie o caminho! –
Deseja a mulher algo desassossegada.
- Bem que precisamos, que o
fumo tolhe-nos a vista! – Ri Júlio, gracejando.
- Tudo passará depressa e, mais
uns dias, ninguém se lembrará que o fogo ceifou estes lugares e os tornou em
campos de cinza… - Profetiza Rita da janela, mais sensata, apertando a mão à
mãe em jeito de despedida. – E quando o verão chegar “andam todos sorridentes,
alegres, negros, contentes…”
- Mas estaremos novamente
ansiosos, tementes, receosos e nervosos. – Rima a mulher, compondo o lenço na
cabeça. - Se alguma vez pensei que o fogo chegasse aqui!? – E olha lastimosa para
os rastos incandescentes no horizonte escuro. – Não se esqueçam de me ligar
quando chegarem! Vão em paz, meus queridos!
A paz daquele lugar pacífico vê-se
retalhada pelas farpas do Demónio, que se cravaram para sempre na paisagem.
O infortúnio não está à esquina para esta
família porque existe certamente uma vida por viver. Uma vida linda que outras
famílias não tiveram a oportunidade de ter.
Pelas orlas marítimas, pelos montes, pelas
florestas, pelas hortas e pelas casas destruídas das gentes, existe
infelizmente muita acha e muito lume. Muita dor gritada e silenciosa. Muita
revolta por perdas irrecuperáveis. Muita miséria após a riqueza. Muita
solidariedade que não calará a dor e o desespero.
Se o calor perdurar mais uns dias, aí sim,
estará condenada a paz, que aguarda a chuva bendita.
Na viagem de regresso a casa, de gargantas
a arder pela agrura da cinza noturna, as três crianças ensaiam uma canção com
um refrão de final feliz. Ecoa na noite quente. Afasta o presente horrendo e afina
um futuro de esperança. Uma canção que repele os ecos maléficos daquele
Inferno.
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