Vou contar-vos a história de uma menina, uma história como muitas outras, de sonhar…
Esta é a história de Lilinha. Sim, Lilinha… É
um nome estranho para uma menina!? Não acham?! Bem… Lilinha foi o nome
carinhoso que os amiguinhos lhe deram, porque o seu verdadeiro nome é um
bocadinho feio. Imaginem só: Lizandra Lionara
Madrinha!? Pegaram nos bocadinhos de cada um dos nomes dela e criaram a Lilinha! É mais bonito, não é? Bem,
passemos à nossa história…
Lilinha
estava deitada, muito quietinha e aconchegada no calor dos seus lençóis de
rosas azuis e brancas, a admirar a surpresa que a mãe lhe fizera. Como prenda
do seu sexto aniversário a mãe mandara pintar-lhe o quarto de azul clarinho com
nuvenzinhas brancas e fofas.
Lilinha
adorou imenso este presente. Tanto, tanto… que a partir daquela noite, no quarto
pintado de céu, as noites nunca mais foram iguais.
Viera
sozinha para o quarto a mando da mãe e ao ver a pintura, que a mãe lhe
escondera, aproveitando os dias em que estivera em casa da avó, soltou um grito
de alegria. Afinal era a última surpresa do dia. Uma surpresa que era especial
e estranha.
- Mamã, mas que… giro! – Disse, abraçando-lhe
os braços negros e fortes. – Obrigado! Adorei…
- Gostas?
- Sim, muito! – Lilinha não sabia se estava a
mentir. – Gostei de tudo hoje. Da festa no jardim, dos meus amigos que vieram
todos, dos avós… do bolo, das prendas… só o papá…
- O papá chega amanhã, querida! Sabes que o pai
não pode faltar ao trabalho. Tem alimentos para entregar nos hipermercados, que
podem ser precisos para fazer festas como a tua. Amanhã de manhã dás-lhe um
abraço grande!
- Está bem, mãe! – Concordou, fixando melhor os
olhitos nas paredes do quarto.
- A mãe vem já. Despe-te e mete-te na caminha!
Hora de dormir!
Lilinha fez o que a mãe lhe pedira. Muito
calada, olhava tudo em seu redor. Depois, já na cama, puxou o edredão de
estrelas brancas, começando por esconder a sua carita morena na almofada branca.
Os
caracóis negros e gorduchos davam-lhe o encanto de um anjo dourado rodeado de neve
de Natal. O narizinho abatatado segurava no seu topo dois lindos olhos cor de
mel.
A
preguiça tomou-lhe conta do corpo pequeno, mas não a deixava dormir. Estava
cansada da animação e da corrida daquele dia de festa, mas, ali no seu quarto diferente,
estava um pouco inquieta. Espreitava por cima do edredão e sentia uma mistura
de receio e de encanto.
“ Isto
é um céu!? Que ideia a da mamã!?”- Pensava, virando os olhos
para as paredes e para as janelas de onde via surgir um bocadinho de luz.
Lilinha
olhava as cortinas azuladas do quarto que rodeavam duas janelas grandes com
vidros aos quadradinhos. Elas conseguiam espreitar a lua, sempre muito lenta e preguiçosa
em aparecer à noite. A mandriona só aparecia algumas vezes, e em várias formas.
Era um espetáculo que Lilinha gostava de ver da sua caminha, quando um rasto de
luz começava a entrar pelos vidros e tocava na sua cama, iluminando o quarto. Mas,
naquela noite, já tinha o céu e as nuvens ali e isso preocupava-a se a lua
aparecesse. Podia até haver uma briga entre eles! Podia acontecer alguma coisa!
“ Como
é que vai ficar o quarto se a lua vier?” – Perguntava, magicando
sozinha. Os olhitos redondos e vivos contiuavam ansiosos e curiosos com aquele
cenário.
De
repente surgiu à porta o rosto conhecido e ela soltou um suspiro quando o
candeeiro se acendeu.
- Estiveste às escuras, Lilinha? – Perguntou a
mãe, sorrindo.
- Ainda bem que vens aí, mamã! Sabes, mãe, eu
tenho sono, mas não sei se quero dormir! Estou cansada, mas…!?
- Porquê, meu amor!? Estás com medo de alguma
coisa? – Perguntou, aproximando o rosto risonho dela.
- Não sei se é medo…! – Começou Lilinha,
tentando mentir.
- É medo! – Riu a mãe calmamente. Apanhou o
cabelo encrespado, deixando descoberta a cara morena e luzidia. – Não gostas
das nuvens nas paredes?
- Gosto, mas parece que estou no céu! -
Confessou Lilinha, destapando-se e sentando-se na cama. – Até o meu pijama faz
lembrar as coisas celestes! - O pijama da menina era cheio de luas, estrelas e
nuvens. Tão fofo como as nuvens, pois a noite estava fria.
- Achei bonito. Combina com o teu quarto novo e
com as cortinas – Sorriu a mãe, fazendo-a deitar e tapando-a de novo. –
Sossega, minha querida! O quarto é sempre o céu de qualquer pessoa…criança, adulto
ou velhinho. É o lugar onde descansamos, dormindo… onde sonhamos…É o nosso céu
privado! – Explicou, muito calmamente, numa voz doce que quase a adormecia.
- É verdade, mamã! – Bocejou Lilinha.
- Agora estás melhor?
- Pronta para dormir no meu céu, muito perto
das nuvens… Estou à espera da minha viagem à lua! – Brincou a menina, muito
sonolenta. – Apaga a luz, mamã! Agora quero partir para os meus sonhos!
- Está bem! Dorme então, fofinha! Sonhos
cor-de-rosa! – Despediu-se a mãe, beijando-a na testa. E saiu do quarto pé ante
pé.
- Até amanhã, mamã! – Soltou, ainda num
suspiro.
Novamente
na semi-escuridão, a menina pensou nas últimas palavras da mãe, arrastada pelo
sono:
“ Sonhos cor-de-rosa?! ” - E espreitou lentamente,
esticando os olhitos por cima do edredão azulado: “ Sonhos rosa neste céu azul e branco?! Este quarto parece ser de um
menino!? A mamã teve uma ideia estranha! Mas pronto, este é o meu céu! ”
O dia
já dormia há muito tempo lá fora. Certamente faltava um pouquinho para a lua malandreca
vir espreitar e conhecer o seu novo quarto, estampado com pompons de algodão. A
lua espalhava, sem pedir licença, os fios de luz e de prata por entre as
cortinas. Lilinha tinha a certeza que a lua a viria visitar naquela noite especial
de aniversário, por isso não podia adormecer.
- Vá lá! Mais um esforço! Não posso dormir!
Tenho que esperar… Ela está quase a chegar… - Falou baixinho consigo própria,
esforçando as pálpebras para não adormecer, para não perder a maravilha de ver a
lua a entrar no seu quarto do céu e do sonho.
Uns
dias a lua aparecia muito fininha como uma folha, outras vezes maiorzita e
outras ainda, muito gordinha e cheia como uma bolacha redonda e esburacada de
água e sal.
- Uma bolacha! Devia ter comido uma bolacha
antes de me deitar! – Disse, rabugenta. – E se demora muito a chegar!? Vou
morrer de fome à espera!
Aquela noite era diferente das outras. Lilinha esperava ver a lua a
entrar no seu céu-quarto. Bem, o céu que a mãe mandara pintar para ela como
presente de aniversário.
Embalada pela melodia doce de um rouxinol, começou a fechar os olhos e entrou
lentamente no mundo da fantasia pelas janelas do sonho. Começava a viagem. Uma
viagem com uma companhia muito querida, o seu periquito branquinho como o
leite, Milky.
“ Vens
comigo, Milky? ” – Pensou.
Milky era uma avezita obediente, todo
direito no seu ombro esquerdo. Era um bichinho com uma cor pouco habitual para
um periquito. Branco como a lua, branco como a neve, branco como as nuvens do
seu quarto. Um passarinho que fora uma oferta do avô Josué, que vivia em Moçambique.
Muito, muito longe dela. A muitos mil quilómetros dela.
Milky era um pássaro de companhia, meigo,
calmo e inteligente, e que na maioria das vezes, andava ao ombro das pessoas. Comia
à mesa debicando migalhinhas que lhe davam, escolhia a cama que preferia para
dormir ou metia-se na mala da escola de Lilinha e ia visitá-la de vez em
quando. Era um pássaro, membro da família. Um miminho que o avô por milagre
ensinara a falar, cortando-lhe o freio da língua, como faziam aos papagaios
para falarem. Daquele bico saíam palavras e frases curtinhas.
Uma
ótima companhia para uma aventura de sonho de uma menina que adormecera no seu
quarto-céu…
O corpinho
leve dela flutuava por um caminho calmo, mas desconhecido. Em cima do seu pijama
celeste Milky baloiçava um pouco,
agora, meio tonto com o ondular do seu corpo.
Ao
entreabrir os olhos nublados e estremunhados, a menina começou a descobrir um
mundo novo. Um mundo que nunca vira. Uma paisagem cheia de pontos de estrelas, que
era estranha e um pouco assustadora, mas ela continuava a sua aventura voadora,
deixando-se levar, porque era e sempre fora uma menina de coragem. Porque havia de ter medo com Milky no seu
ombro?
Aprendera
com a mãe que se deve encarar tudo sem medo e sem desistir. Prometera à mãe tentar
não chorar quando estivesse em perigo e mesmo que tivesse medo, pensaria com
calma no que fazer para se salvar. Estava a conseguir cumprir a promessa
naquela aventura.
“Mas
que mundo é este, Milky? Nunca vi nada igual a isto?” –
Pensou, um pouco receosa.
- P’ligo,
Lili! P’ligo! – Gritou ele.
- Não é perigo, não! Acho que talvez não, Milky.
Aquele
lugar desconhecido era muito alto e perigoso para uma criança. Lilinha tivera sempre
vertigens e as pernas dela pareciam estar a separar-se do seu corpo pequeno,
que não parava de tremer. Parecia estar no cimo de uma montanha no céu pintada
de branco e de azul-bebé, mas não era nem neve nem gelo.
Lilinha
sentia as bochechas do vento a soprar-lhe os caracóis encrespados e negros, mas
não se mexia perante o seu poder. Podia até cair daquele monte abaixo, mas, na
verdade, parecia que não ia cair. Ao seu lado, a ave olhava para ela, esperando.
- Mas que é isto, Milky? Este vento sopra mas não nos abana?! – Estranhou, sentindo-se
poderosa.
- Não, não!? – Disse ele, com vozinha muito fininha.
– Milky… forte!
O
céu escuro da noite começou a clarear um pouco.
- Conheço esta luz! Se conheço! – Disse ela,
feliz e aliviada. Os olhitos-mel dela brilhavam de alegria por ver chegar algo
que reconhecia e que adorava.
A
conhecida aproximou-se deles devagarinho. Tinha uma forma estreita. Parecia um
barquinho de prata com remos de raios radiosos crescentes.
- A minha amiga lua! Que bom que vieste! Juro
que já estava com medo do escuro, mas não contes à minha mãe que estou ainda
acordada! Vens-me tirar desta montanha, não vens!?
O
barquinho, com uma boca esticadinha, pareceu-lhe sorrir. Lilinha, no pico do
monte, podia cair se alguém não a ajudasse.
- Vieste
buscar-me, lua amiga? Eu não posso ficar aqui toda a noite!? É perigoso para
uma criança e um passarinho pequeno! – Pediu, quase fazendo beicinho.
Milky debicou-lhe os caracóis para a acariciar e acalmar.
Serena
a lua-moleza aproximou-se dela, chegando-lhe os seus braços-raios. Lilinha
subiu por um dos remos de prata, agarrando-se com força. Depois alcançou a sua
forma espalmada e abraçou-a. Milky cravou as unhas ao ombro de Lilinha,
tentando equilibrar-se e gritou:
- Medo! Milky,
medo!
- A lua não é traiçoeira para nós! É nossa
amiga! Podemos confiar nela! – Afiançou ela, já a salvo.
Porém, depois, olhando aquele gigante branco-luminoso, interrogava-se um
pouco confusa:
- Mas como posso estar a tocar na lua? Isto é
impossível! Que feitiço tem a lua sobre mim? A avó Nanda disse-me que o meu
nome era para ser Luana! Luana vem de lua. A lua podia ter sido a minha fada-madrinha!?
Porque é que me deram o nome de Lizandra Lionara Madrinha! Luana era mais
bonito! Mas, pronto, todos me chamam Lilinha! Se um dia tiver uma filha vou-lhe
chamar Luana! Adoro esse nome! A minha próxima boneca vai-se chamar Luana! Não
achas fixe, Milky?
O periquito olhou-a intrigado.
- Ó lua, porque dão nomes esquisitos às
pessoas? – Perguntou, olhando-a sem lhe encontrar os olhos ou a boca. – Não
devem gostar delas, pois não?
A
lua não lhe deu resposta e Milky
também não reagiu, mas a menina continuou com a sua razão.
- Lizandra
era o nome de uma bisavó materna de África, Lionara
de outra bisavó do papá do Brasil… Madrinha
é o apelido do pai. Que mistura tão feia! Lilinha, sempre fica mais bonito, mas quando fui fazer o cartão de
cidadão e viram o meu nome completo, olharam para mim, com vontade de
rir…Deu-me vontade de chorar, mas, pronto, tenho que ter este nome, queira ou
não, não é, lua?
A
lua não a escutou e começou a navegar lentamente no espaço azul-celeste para
não a deixar cair e ao seu periquito. A menina não sentia medo, achando
encantador voar devagarinho com a lua. Abraçada a ela. Sentir que tinha força
para a rodear com os seus bracinhos. Também não sentia frio com o seu pijama fofinho
de nuvens, estrelas e luas. Não sentia sequer vento ali naquele espaço-céu. Nem
as penas de Milky se moviam.
- Eu não estou a sonhar, pois não, Milky? Eu estou a voar contigo… A lua leva-nos
a voar…mas flutua como um barco ou voa como um avião!?
- Boar…
Sim, boar! – Repetiu Milky.
A lua
deslocava-se suavemente no espaço estrelado um pouco povoado de nuvens, que
pareciam algodões-doces gigantes. Muito parecidos com os do seu quarto.
Lilinha, da sua lua-lesma voadora, avistava as nuvens-algodão, que, em grupos
pequenos, cochichavam e bisbilhotavam como mulherzinhas à frente da igreja ao
domingo.
- Olha as linguareiras! A falar da vida umas
das outras! – Gritou, rindo às gargalhadas que quase fez cair o Milky.
Adoraria
dar pulos em cima delas e sentir a sua suavidade, mas isso era um sonho
impossível de realizar. Adoraria acabar com aquela bisbilhotice delas, mas
seria uma grande maldade. Ela era uma menina boa e naquele dia tinha acabado de
fazer seis anos…
“ Não posso fazer maldades! Se faço alguma
partida, vou ter que devolver os meus brinquedos, as minhas prendas todas… e eu
não quero isso! Nem a pintura-céu do meu quarto… afinal não é tão má assim!
Levou-me até à lua! Por isso, porta-te bem, Lilinha! Tens que ser uma boa
menina!” – Lilinha tentava pensar como uma adulta. – “ Mas eu só queria mesmo sentir a fofura das
nuvens… não era preciso meter-me nos seus mexericos! “
O
barquinho flutuante parecia ter ouvidos pois escutou o seu desejo pensado e logo
fez por tropeçar ao de leve numa nuvem pequenita isolada. De seguida, com um
impulso um pouco mais forte, a lua lançou a menina para cima da nuvenzita e,
ela, pela primeira vez, sentiu o que era ter asas e voar sozinha. Na sua curta
existência nunca experimentara aquela sensação de cair em cima de um colchão de
algodão. Ao seu lado Milky, de asas
abertas, não teve outra solução senão voar por cima da sua cabeça e poisar
nela, emaranhando as unhas nos seus caracóis.
- Dói, dói! – Gritou, soltando o pássaro. – Mas
é bom voar, Milky! – Riu,
desequilibrando-se em cima da nuvem. – Pareço a Heidi nos Alpes! A mamã mostrou-me os desenhos animados que a avó
via em pequena. Eu sou como ela a viver uma aventura no céu em cima de uma
nuvenzinha!
- Bom, bom! – Repetiu Milky, agitando as asinhas.
A
nuvem era tão confortável e macia como a sua cama. Milky acomodou-se no seu ombro quando ela se sentou. Poderia dormir
ali um bom sono se a deixassem. Ficaria ali sem a companhia da mãe e da sua
canção de embalar como uma menina grande e corajosa. Então viu, com alguma
tristeza, que a sua lua se afastara um pouco, esperando-os como uma sentinela.
Aquela
nuvem jovem levava-os agora para se juntar às outras nuvens grandes. Aproximou-se
lentamente do grupo, mas foi levando alguns encontrões, como se as outras nuvens
mais velhas lhe aplicassem um castigo.
- Mas porque é que te empurram, nuvenzinha? O
que é que fizeste de mal!? – Interrogou-a Lilinha. Depois percebeu. – Já sei … uma
pequenina nunca se deve afastar da vigilância dos mais velhos! É perigoso, é! Bem-feita,
para a próxima, já sabes…
A
nuvenzinha não reagiu às palavras dela. Lilinha não entendia a linguagem das
nuvens e tinha a certeza que também não entendiam a dela, mas as grandes pareciam
bastante zangadas e furiosas.
Milky começou a ficar enervado, e, sacudindo
as asas, gritou tão fininho, que só ela o ouvia perto do ouvido:
- P’ligo,
Lili!
- Calma, Milky! Afinal não estão no diz-que-me-diz! Alguma coisa se passa de
errado!
A
nuvenzinha foi empurrada para a frente das outras com alguma violência e Lilinha
teve que se agarrar com força para não cair no espaço desconhecido.
- Ai,
ai! Mas eu não fiz mal a ninguém!
Acho eu! Bem se calhar até fiz… - Pensou melhor um pouco alarmada. – Saí do meu
quarto, da minha casa sem pedir licença à mamã! Trouxe-te, Milky! E nem sei como! Ai se
a mãe vai ao meu quarto e não me vê lá! Vai ficar muito aflita! – E começou a
ficar preocupada, mas logo se distraiu com a conversa agressiva das nuvens.
No
centro daquele tribunal de nuvens, fazia-se um julgamento e Lilinha não sabia o
que ali se decidia. Em lados opostos estavam dois seres gigantes, luminosos e
faiscantes. Conduzida pela nuvem e quase esmagada pelas grandes, Lilinha entrou
no círculo de nuvens.
- Que
monstros são estes, Milky? –
Perguntou, agarrando-se com firmeza à nuvem, mas ninguém lhe respondeu.
“ Ainda
bem que não me percebem, porque se me percebessem não iam gostar de ser chamadas
de monstros.” – Pensou, nervosa.
Lilinha
não os reconheceu logo, porque era nova naquele mundo-céu, mas sentiu que eram
bastante assustadores. Depois admitiu que podia ser um casal de nuvens a discutir
o seu divórcio perante um juiz, e que aparecera exatamente quando as nuvens
espessas e cinzentas chocaram no céu violentamente.
- É um divórcio, Milky! Num divórcio as pessoas gritam umas com as outras…e às vezes
ninguém tem razão!
Os
dois gigantes de formas retorcidas gritavam com o vento forte entre eles, que
continuava a não tocar nem na Lilinha, nem no Milky. O vento era o juiz moderador daquele julgamento e as nuvens
os réus, os advogados de acusação e de defesa, que não se entendiam.
- Vou-lhes chamar Trovão e Faísca! Este casal
não se entende mesmo!
Lilinha, apertadinha na sua nuvem, pegou em Milky com as mãos e entre duas nuvens maiores, estremeceu, agora
medrosa com as vozes estridentes e horrorosas do senhor Trovão e da senhora Faísca.
A discussão deles ficou mais acesa e foi tão violenta que fizeram surgir pela
Estrada do Céu relâmpagos, meio desengonçados, desvairados e luminosos. Incendiaram
a noite, espalhando os braços ramificados pelas nuvens, que se espremiam como
esponjas e abriam as goelas para deitar ao longe trombas de água de raiva.
- Só faltava chover, Milky! Se chover aonde nos abrigamos?
- Água! Milky,
medo!
- Não há aqui um telhado! Não temos
chapéu-de-chuva!
- Chuva! Chuva! – Repetiu a ave.
De
repente o céu pleno de luar e de estrelas, encheu-se de nuvens-esponja, que se
sacudiam e se empurravam umas às outras, expulsando de casa sem dó nem piedade,
os seus filhos pinguinhos.
Lilinha não sabia que decisão tomar com a chegada daquela tempestade
medonha, mas ficou aliviada porque a sua nuvem não estava interessada em verter
água. A chuva que chegara repentina, sem que Lilinha e Milky se pudessem abrigar, incrivelmente não os molhava, porque a pequena
nuvem conseguira fugir da família e escolhera um lugar tranquilo próximo da
lua. Escondeu-se pois, por detrás dela, aguardando que a fúria do casal Trovão
e Faísca se acalmasse.
Os
olhos de Lilinha começaram a pesar muito e, confortada na sua nuvem-cama,
vigiada pelo olhar amigo e pacífico da sua fada-lua, e o calor fininho de Milky no seu rosto mulatinho, finalmente
adormeceu.
Agora
a chuva era firme e queria cair durante toda a noite. Milky, como um cãozinho de guarda, assobiava uma modinha de África,
que o avô Josué lhe ensinara para embalar Lilinha. Com ela, Lilinha sossegara, sem
temer a chuva, porque sabia que se acalmaria quando aquela briga acabasse. A
mãe dizia-lhe muitas vezes um ditado popular: “ Depois da tempestade, vem a bonança” e ela confiava nisso.
Quando acordou, quase ao amanhecer, Lilinha espreguiçou-se deleitada na
sua nuvem, sentindo o raiar quente do sol no corpo. Milky também se espreguiçava, abrindo o bico vermelho-escuro. Ainda
chovia um pouco, mas as nuvens escuras e feias, começavam a debandar para
outras paragens.
A
nuvenzinha estava sozinha e não tinha quem a protegesse. A lua estava quase a
desaparecer com o surgir do dia, porque o sol tomaria o seu lugar. Os pingos da
chuva ainda saíam de algumas nuvens resmungonas, e, ao longe, ainda se ouvia o
ribombar dos tambores sonantes do senhor Trovão e da senhora Faísca.
O sol
quente perto da escuridão, com os seus braços longos e luzidios, injetou a
tintas multicolores um belo arco-íris, que fascinou Lilinha e fez Milky piscar os olhitos.
- Um arco-íris! Lindo! – Gritou Lilinha,
segurando Milky com o polegar.
- Lindo, lindo! – Repetiu ele, abanando o corpinho,
muito feliz.
Infelizmente,
naquela altura, a lua madrinha já havia partido sem deixar sinal e não pode
assistir àquele espetáculo mágico de luz e cor. Ela era a rainha da noite, mas a
luz forte do dia, fazia-a desaparecer. Lilinha sabia disso, mas sabia também
que, na noite seguinte, voltaria a aparecer.
Depois, lentamente, a nuvem fugitiva conseguiu aproximar-se do pico da
montanha, do lugar onde Lilinha e Milky
começaram a sua viagem. Passaram devagar por debaixo do magnífico arco das
cores da vida, e, pela primeira vez, eles puderam admirar o tamanho daquela
maravilha da natureza. Eram lindas as sete cores, e era tão raro acontecer e
tão breve. No entanto teimava em ficar por ali algum tempo sob o feitiço do sol
sobre as nuvens carregadas de água.
Lilinha e Milky foram deixados
pela nuvenzinha em cima da montanha e despediram-se dela.
- Obrigado! Boa viagem! – Desejou a menina,
mesmo sabendo que a nuvem não a compreendia.
O
vento soprava, agora despejando as bochechas devagar. Finalmente os sons do
casal tormentoso e briguento desapareceram e as nuvens aflitas e maternais
vieram acolher a pequena vadia.
Há
algum tempo a lua já se fora deitar para descansar de uma noite cansativa de
viagem e de vigia e o arco da paz encolheu-se depois também, desaparecendo no
horizonte celeste. A chuva começara igualmente a recolher os seus filhos
menores.
Da
sua montanha, Lilinha e Milky observaram
como era dedicada e meiga a senhora Chuva. Tal qual a mãe de Lilinha. Depois de
aliviar a sua tensão, de amparar os pinguinhos, arrumou-os nas casas das nuvens
brancas, distribuindo assim todos os seus rebentos por tamanhos e idades, de
uma forma muito ordenada.
- Olha, Milky!
Como é carinhosa a mãe-chuva!
- Chuva! Chuva! – Repetiu, abanando as penas,
como se sacudisse água delas.
Os
filhos bem-educados respeitavam as ordens da Mãe-Chuva e só saíam quando eram
chamados por ela. Nessa altura davam de beber à sua maior amiga, a Terra-Mãe e
aos seus milhões de crianças espalhadas pelo mundo: as ribeiras, os rios, os
lagos, as fontes, os poços, os campos, os animais e os homens.
Lilinha, encadeada pelo sol, observou a senhora Chuva a guardar para o
lado mais escuro das nuvens, os seus filhos: os granizos, os aguaceiros, os
chuviscos, os pingos, os molha-tolos, e todos os outros que ela nem conhecia o
nome.
- Parece um exército, Milky! Se fogem à mãe, metem-se em sarilhos! – Disse, sorrindo e
vendo uma carreirinha em direção às nuvens.
Ela
sabia e via na televisão que a Mãe-Chuva, por vezes, dava ordens para assustar
os homens e lançava enxurradas e cheias, reunindo os filhos todos de uma vez,
para trazer males ao mundo. Ela tinha que lembrar os homens que, na natureza, só
manda quem tem maior força e poder. Nenhum homem tem mais força do que ela ou
pode prever o tamanho da força dela. Lilinha era pequena, mas sabia que aquela
mãe era mais forte do que os da sua espécie. Aprendera a respeitar isso com a sua
própria mãe.
Tinha
sobrevivido àquela aventura no espaço-céu ao mundo da lua e aprendera muito com
aquela viagem.
Agora
estava ansiosa pela chegada da hora da escola para contar aos seus amigos a sua
sorte. Antes disso, ao pequeno-almoço, contaria à mãe e ao pai o que lhe
sucedera à noite. Apostava que eles iam gostar da sua história fantástica.
Acreditassem ou não nela. Milky ia
contar palavrinhas pequenas para provar a sua história. A mãe podia ajudá-la a escrever
um conto para mostrar à professora, porque começara a aprender a ler e a
escrever há pouco tempo e ainda não sabia fazer textos grandes.
Os meninos
ouviriam a sua história e iam pedir aos pais para lha contar ao deitar e assim também
sonhariam felizes. Teria uma lição para dar que seria uma ajuda para afastar os
medos das outras crianças, os medos das coisas da natureza. O medo da magia da
lua, porque afinal a lua era meiguinha e amiga.
De
repente Lilinha sentiu o toque de uns lábios quentes e, aconchegada e
mandriona, esticou os bracinhos na sua montanha branca e azul. Os raios de sol,
ao entrarem no seu quarto-mundo de céu, despregaram-lhe os olhos ensonados.
Anunciavam um dia bom e agradável, acordando-a também para a realidade.
- Ó, mamã! Estou aqui!? – Levantou-se de
repente, um pouco triste. – Mas…? Mamã, eu vivi uma aventura com o Milky! Onde está o Milky?
- Aqui, filha! – Riu a mãe, quando o periquito
lhe subiu pelas costas acima até ao ombro esquerdo.
- Mas…Se ele está aí e eu aqui… A lua…? A
nuvenzinha…? O Senhor Trovão e a Senhora Faísca!? Foi um … - Disse Lilinha,
esfregando os olhos e quase a chorar.
- Um sonho! – Ajudou a mãe, sorrindo calmamente.
- Ó, não!
Desiludida,
Lilinha olhou para um canto mais escuro do seu quarto azul de nuvens brancas e
fofas. Piscou admirada os olhinhos-mel. Não tinha reparado numas imagens no
canto da parede. Jurava que não estavam lá na noite anterior. Entre as nuvens
gordas, uma nuvenzinha pequena espreitava e, ao lado dela, uma lua gigante,
brilhante, branca com raios-remos, esticava-se atingindo as nuvens.
- Mas…? Não estavam ali ontem!? O que
aconteceu? – Perguntou, muito alegre.
- Não, não! – Disse Milky, contente.
- O poder do teu sonho, querida! Adoras a lua,
aí a tens…Basta acreditar nos sonhos que se consegue tudo o que queremos, minha
filha!
- Adoro-te, mamã! – E rodeou-lhe a cintura, num
abraço. Milky meteu-se entre as suas
orelhas. – Milky, mauzinho! Afinal nós
vivemos esta aventura com a lua!
Aquele
quarto seria o caminho para muitas viagens ao mundo dos sonhos durante a noite
e as suas histórias seriam guardadas num conto infantil escrito pela memória de
alguém quando tinha seis anos.
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