Quinze
de março de 2017. A criatividade e a ânsia de escrever brincam comigo. As fantasias
da conceção não esperam. Viajo no tempo do sonho para um mundo diferente do meu.
2016. Visita de estudo a Londres. Mereço
esta viagem após vinte e tal anos de entrega à causa educativa. Adiei
oportunidades como esta durante anos com medo do IRA. Agora assola-me
o terrorismo islâmico. O avião, pássaro monstro, é um limite imposto à minha
calma. Vou sossegando o meu desassossego, conformando a experiência de quem me
acompanha e rego-o com a fé e a crença de que tudo decorrerá bem.
O dia da partida aproxima-se.
Prevejo quatro dias e cinco noites de responsabilidades atormentadas
pela insegurança da incerteza, começando numa viagem madrugadora por terra. Concebo
a confusão e o aparato policial no aeroporto, a desconfiança medrosa por causa
dos atentados atrozes recentes. Os jovens descontraem o ambiente tenso, rindo,
ávidos de curiosidade, de convívio e de desejo de visitar um dos países de
olhos no mundo.
O primeiro dia atrai-os pelo consumismo das lojas das ruas de Londres, Piccadilly Circus, Trafalgar Square, China Town.
Pubs.
“ Começa mal. Mau agoiro. Uma baixa no check-in. Alguém esqueceu o cartão
de cidadão em casa! A pessoa com mais experiência de viagens?!”- Penso,
alarmada. Depois acalmo-me.
- Vai regressar a casa. Apanha um
voo mais tarde! – Anuncia-me a colega.
Não digo nada, mas cogito: “ Nunca viajaria sozinha para Londres!”
A minha bagagem voará no porão. Entramos.
Suspense. Atrasa-se o voo. Paira em
mim o pavor do terrorismo. O silêncio das hospedeiras, o comprometimento calado
do comandante. Há uma avaria técnica. Morro de pânico, mas não revelo. Olho a
janelinha arredondada. O círculo mostra-me uma das asas do monstro. Suspendemos
ali a esperança durante quase duas horas.
Anuncia-se depois a partida. A avaria
teve um propósito, o suicídio de um pombo. Chegamos a Londres. Liberto-me do
medo porque piso solo, mas a polícia armada até aos dentes está de ronda entre
aquelas trincheiras aos ziguezagues, nos labirintos de gente que geme esfomeada
e esgotada. Escutam-se petizes a chorar, impacientes.
Saímos em busca da bagagem. Vejo-a a cair do porão. Soltam-se ais de alarme. Esperam-nos tontas num
carrossel giratório. Não vejo a minha. Perdeu-se?
Medito, nervosa, procurando. Surge
com outra igual. Perdeu as duas rodas. Aleija-me as pernas no trajeto longo.
Entramos no autocarro, comendo sandes e bolos, quase saindo de uma greve
de fome. Vou atenta ao percurso como um cão memorizando o caminho, com receio
de me perder. Não consigo. Longe demais. Muitas retas pela esquerda. Até julgo
ver os carros bater. Memorizo bairros tradicionais, ruas sem rotundas,
monumentos antigos em castanhos e tijolos.
Cai a tarde enevoeirada, de smog. A
cidade efervescente corre ao contrário dos meus sentidos. Reconhece-se alguns elementos
britânicos conhecidos dos manuais. O double-decker,
o táxi, o bobby. Publicidade
ofuscante. A guia acolhe-nos simpática, de discurso amistoso e animoso, orientando-nos
nos percursos. Sinto-me mais segura.
Acomodamo-nos no hostel, fazendo grupos. À entrada estão dezenas de jovens de várias
nacionalidades. Enganamo-nos na ala. Mulheres e homens no lado errado. Os rapazes
apanharam jovens nuas no balneário. Deliciaram-se com a surpresa. Toca a trocar. Fico no quarto junto à
junção da porta para a escadaria. Vai chocar toda a noite! Estou sozinha com os
meus medos. Provavelmente não dormirei. A colega regressa num voo tardio. Visitamos
a zona do refeitório, do bar, e apercebemo-nos que Portugal está na pele de
dois empregados jovens que nos recebem, patrióticos.
Dali o mundo espera-nos e o receio do infortúnio vai-se dissipando,
porque há que absorver tudo de uma vez e registar os momentos na memória e nos
telemóveis. Queixas não contam. Pés dolorosos não doem. Quilómetros de metro
como toupeiras não esgotam, porque nos levam a lugares previstos e ansiados.
- Mind the gap! Mind the gap! – Grita-se, escutando-se o aviso de
manutenção de distância de segurança. Os jovens acorrem unidos ao chamamento
como formiguinhas ordeiras. Entram nas latas de sardinhas. Julgam-nos italianos
ou espanhóis, pela alegria contagiante. Cantamos felizes pelos corredores do Underground, como líderes de ensaios não
preparados. Metemo-nos nos elevadores para o exterior e mantemos o júbilo vivo,
alvo da inveja de olhares cansados.
- Keep right! Keep right! – Alguém grita nas escadas rolantes,
obrigando-nos a encostar à direita. Olhamos as paredes plenas de anúncios e
enchemo-nos da cultura de Londres. Deixamos moedinhas nos pratos dos que tentam
a sorte na música e cantamos com eles.
Rejubila-se cá fora, ao ar livre, com o zumbir da cidade intensa em
nosso redor. Os edifícios, as lojas, as gentes entram-nos pelos olhos, querendo
reter-se na nossa lembrança. Aliciam-nos. Atraem-nos como mel.
A noite cai tarde, mas nem por isso os corpos descansam. O vaivém da porta
não me deixa dormir. Trocam-se conversas, quartos. Noites animadas prevêem-se. Aquecem
elevadas como o calor do aquecimento central. Barulhos na cidade lá fora duram
intactos.
O dia seguinte ergue-se pesaroso, dolente, mas apronta-se com um banho. Café
amargo, chá, pão de fatia, queijo, cereais, partilhado com jovens e professores
estrangeiros.
Os dias vão acontecendo na margem da descoberta e da surpresa. Madame Tussaud encanta-nos com os seus
convidados. Elvis, Freddie, Madonna, The
Beatles, Ronaldo, Mourinho, Lady Di… Paulo II… figurantes de cera quase
reais, de tantos mundos, que esbarram connosco e nos intrigam pela perfeição. Aventuro-me
no passeio da fama da moda e cobram-me dez libras por uma foto. Camden Town ataca-nos as carteiras. Sujeitamo-nos
a comidas plásticas e outras estranhamente condimentadas de outras nações. Starbucks de cafés amargos precisam de
dez açúcares. Saudades do nosso café.
Oxford, Carnaby, Regent, ricas de
história dão-nos motivos para enterrar libras. Apaixona-nos o Hyde Park, molhando-nos à noite com showers, a caminho do Hard-Rock Café.
Na manhã sonolenta segue-se o render da guarda real no Palácio de Buckingham. A bandeira hasteada confirma
por lá Sua Majestade. Invento-a na varanda. Milhares retêm-se nas objetivas. Faço
amizade com brasileiras, que descubro na mistura de línguas. A residência do
primeiro-ministro e a Abadia de Westminster
ficaram miragens passageiras para olhos curiosos. As casas do parlamento e o
emblemático Big Ben serviram de
cenário para dezenas de arquivos. Corre-se pelos túneis do metro, queixando os
pés, de passes guardados de estação para estação. Um jovem descobre a rolar no
metro um anel perdido na noite anterior, que não se sabia perdido. Sorte.
Coincidência.
London Eye. O olho. Memorável,
emocionante. Adrenalina ao rubro. Temo alturas, mas projeto o Tamisa pela
cidade. Não tenho libras de sobra para ficar com o álbum de memórias. Não
chegamos a tempo aberto à Torre. Pena. Chove. Troveja violentamente. Procuro os
corvos, temendo o reinado esteja em risco, como estima a lenda. Não avisto
nenhum. Maldição! A Tower Bridge exibe-se
numa foto de grupo com relâmpagos de fundo. O portão dos traidores açoita-nos
dali.
Um novo dia do roteiro traz-me o museu britânico, a catedral de São
Paulo e Covent Garden. Depois o Harrods. Pastéis de nata no Museu de
História Natural vendidos por uma portuguesa. Cansaço evidente nos rostos do
grupo.
À noite, alguém jura ter deixado no
restaurante um telemóvel, mas o abandonado apareceu na confusão de uma mochila,
já vasculhada. Sorte ou acaso?
Regresso a Portugal à vista, regresso das
dores agoniantes. No check-in fica um
creme natural e um souvenir de neve.
Não determinam a quantidade líquida. Perco-os com uma lágrima, revoltada, sem
poder reclamar. Tenho dois euros de recompensa que achei no chão. Rio da sorte
madrasta.
Descolamos. Troco várias vezes de lugar
com a mala distante. Acho a viagem mais duradoura. Poços de ar perturbadores. Passa
a tragédia pela cabeça. Juro não mais viajar de avião. Quebra de tensão de uma
jovem. Apoio das hospedeiras. Atrás oiço francês de boquinhas pequenas. Começamos
a aterrar. Masco freneticamente a pastilha, rezando a todos os santos. Soltam-se
risos adoráveis das boquinhas, enquanto o meu estômago empareda as costas. Saímos.
Perdeu-se um cartão de cidadão de um jovem nosso. Prova-se a identidade e faz-se
a reclamação. Há aparato policial novamente. Fazemos tempo. O cartão aparece, aliviando-nos
o stress. Caiu no avião e alguém devolveu.
“ Afinal, a visita foi abençoada pela sorte. De perdidos e achados.”-
Penso, feliz.
Finalmente as pernas param de tremer em solo firme. Há uma viagem de
duas horas de regresso, ouvindo um relato de futebol. O silêncio esgota-se no
cansaço do caminho. Devolvemos os jovens aos pais emocionados. Recebo os
abraços desejados, fraternos. Cheguei salva, com muitas histórias para contar da
mira do mundo, trazendo o mundo de pequenos nadas comigo.
Os testes acordam-me na realidade. Grito no pesadelo:
- Estou viva! Long live…me! – Faço louvores de sobrevivente a esta viagem.
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